As lições amargas do desastre
no Rio Doce


Como o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), revela a vulnerabilidade da natureza diante de crimes ambientais.

Confira o especial

"Fabiano alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou à ladeira que levava ao pátio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um buraco".


Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Continuar lendo

Por Edgard Matsuki

Eles ouviam barulho da água, dos pássaros, do agito de plantas. Fez-se o silêncio e o deserto. "Eu estava em casa e ouvi um barulho", diz José Nascimento. "Não tinha a dimensão do que ocorreu", recorda Mônica dos Santos. Moradores da cidade de Mariana hoje vagam, pelo olhar ou pela memória, pelo lugar que era mais do que endereço. Identidade se fez seca. Santuário se fez árido. Transparente se fez quente, espesso, oleoso e imbebível. Traumatizados e sob o risco do que poderia ter sido, sobreviventes do maior desastre ambiental da história do Brasil são como Fabiano e Sinhá Vitória, meninos e meninas sem nome a andar contra a seca mesmo diante de tanta água. Tinham Rio Doce no sobrenome e correndo no sangue. Acabou. O olhar virou dor e asco. Quase três anos após a tragédia de Mariana, monitoramento diário e ações para minimizar o impacto da lama ainda são necessários. O desastre exemplifica em caminhos manchados como a falta de responsabilidade ambiental pode afundar o leito e contaminar a nascente para uma consequência irreparável. Quanto custa perder o Rio Doce? Uma lição amarga que um país gigantesco como o Brasil precisa encarar para evitar que outros episódios como esse se repitam.



Navegue por capítulo





A tragédia e o impacto no Rio Doce


Quando a barragem da Samarco se rompeu, em 5 de novembro de 2015, e 62 milhões de metros cúbicos de lama invadiram o distrito de Bento Rodrigues (na cidade mineira de Mariana) muitas dúvidas surgiram. Algumas destas questões estavam relacionadas ao impacto ambiental da tragédia. Em meio ao trabalho de resgate de vítimas e realocação de desabrigados, alguns órgãos se mobilizaram para mensurar as consequências da tragédia ao meio ambiente e à bacia do Rio Doce.

O desastre com a barragem de Fundão – pertencente à mineradora Samarco, cujas controladoras são a Vale e a anglo-australiana BHP – foi considerado o maior da história do Brasil. Foram 19 mortos, centenas de imóveis destruídos, milhares de pessoas desabrigadas e danos ambientais que, com a poluição do Rio Doce, se estenderam aos estados do Espírito Santo e da Bahia.

Em um primeiro momento, a verificação da situação das águas do Rio Doce acabou sendo feita por equipes que estavam em campo. Uma delas era a do Serviço Geológico do Brasil (CPRM). Sem saber a real dimensão que o desastre poderia ter, uma equipe de dois técnicos foi deslocada no dia 6 de novembro para verificar o nível das águas (e da lama) no Rio Doce.

Independentemente da qualidade da água, o temor naquele momento era que a onda de lama invadisse outras cidades (como Governador Valadares) e comunidades ribeirinhas. De acordo com o pesquisador Márcio Cândido, engenheiro do CPRM, era inviável fazer muitas avaliações naquele instante: “O nível de sedimentos era tão grande que nem era possível colocar um barco no Rio Doce”.

Paralelamente ao monitoramento do CPRM, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) intensificou os trabalhos e começou a analisar a qualidade da água diariamente. Com o passar dos dias, a Agência Nacional de Águas (ANA) passou a dar suporte para o CPRM, que chegou a deslocar dez pessoas para o monitoramento e começou a coletar dados sobre a qualidade das águas do rio. Os primeiros resultados do CPRM e do IGAM mostravam o que poderia ser visto a olho nu: o Rio Doce (que mesmo antes do acidente estava em situação degradante) estava muito comprometido pela lama da Samarco. Os níveis de turbidez da água (o quanto ela não está transparente), condutividade elétrica, oxigênio dissolvido, resíduos sólidos e de manganês estavam muito acima do aceitável.

Mesmo diante do desastre, uma informação acalmou um pouco os técnicos. Metais tóxicos como mercúrio e chumbo estavam nos níveis normais. “Vimos que o impacto foi mais físico e social do que químico. Houve impacto, mas quimicamente não foi tão danoso. Nas análises químicas não foi detectada nenhuma alteração fora do comum de metais que possam ser absorvidos.”, afirma Cândido. O pesquisador aponta que o tipo de mineração na região foi decisivo para que o Rio Doce não sofresse um impacto ainda maior: “Se fosse uma mina de ouro que tivesse barreado em Mariana, o acidente teria um impacto, dadas as proporções, semelhante ao desastre de Chernobil por causa dos elementos utilizados na extração de ouro”.

O monitoramento do CPRM durou até janeiro de 2016 e gerou quatro relatórios. Enquanto o órgão voltava às atividades de monitoramento geológico de rotina, outros davam início à segunda parte do trabalho no Rio Doce. Era o nascimento da Fundação Renova e do Comitê Interfederativo (CIF).




    2015

  • 5 de novembro

    A barragem da Samarco se rompeu

  • 6 de novembro

    Dois técnicos do Serviço Geológico do Brasil (CRPM) foram deslocados para verificar o nível da água

    Famílias, que estavam em um ginásio, foram realocas em hotéis

  • 16 de novembro

    Primeiros resultados sobre qualidade da água são publicados

  • 2016

  • Janeiro

    Fim do monitoramento do CRPM

  • Março

    Samarco, Vale, BHP e órgãos públicos assinam Termo de Transação e Ajustamento de Conduta

  • Maio

    Comitê Interfederativo (CIF) é criado

  • Junho

    Fundação Renova é criada

  • 2017

  • Dezembro

    Situação da água do Rio Doce apresenta evolução em relação ao desastre, mas ainda tem índices inferiores aos registrados antes de novembro de 2015

  • 2018

  • Março

    No Fórum Mundial da Água, Renova afirma que serão pagos R$ 2 bilhões em indenizações

  • Abril

    Moradores de Bento Rodrigues reclamam de situação dos atingidos pelo desastre





Depois do primeiro impacto, entidades se organizam


Com a dimensão dos estragos da lama de Mariana e apurações de responsabilidades, as empresas responsáveis pela mineração e entidades governamentais começaram a estudar uma forma para minimizar os estragos da tragédia. Foi neste contexto que um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) foi assinado pela Samarco, Vale, BHP Billiton e órgãos da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo. A diretora da Agência Nacional de Águas e uma das representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Gisela Forattini, conta que os dias pós-tragédia foram de movimentação intensa. “Assim que aconteceu o acidente, cada órgão agiu de acordo com a sua expertise. Depois do desastre, criamos um órgão [o CIF] com 11 câmaras técnicas que definiram 42 programas a serem assinados no TTAC”, conta. A criação oficial do CIF foi em maio de 2016.

O TTAC foi assinado em 2 de março de 2016. De um lado, as empresas responsáveis pela mineradora de Mariana se comprometeram a realizar planos, entre outros, de monitoramento e recuperação dos danos da tragédia no Rio Doce. Do outro, os órgãos públicos estavam designados a fiscalizar e fazer apontamentos em relação ao trabalho de recuperação da região. Neste contexto, a Fundação Renova foi criada em 30 de junho de 2016.

Apesar de ser notória a responsabilidade da Samarco, segundo o advogado-geral de Minas Gerais, Onofre Alves Batista Júnior, judicialmente foi necessário abdicar da solução tradicional que era aplicada em casos de desastres ambientais: acionar a Justiça e fazer o sequestro de bens das empresas. “Chegamos à conclusão de que a melhor alternativa era deixar a empresa de pé fazendo a recuperação”, diz.

Desde então, a Renova envia mensalmente relatórios sobre as ações na região para o CIF. O comitê, por sua vez, se reúne mensalmente para avaliar as ações. “Já elaboramos 17 notas técnicas [que podem ser acessadas aqui] com observações sobre o monitoramento”, conta Gisela Forattini, diretora da ANA.

Em cerca de 1 ano e meio, a Renova investiu, de acordo com dados da própria fundação, R$ 4,8 bilhões nos programas de recuperação dos danos causados pelo desastre de Mariana. A fundação monitora a qualidade da água em 42 pontos do rio. O TTAC prevê que o trabalho deve ser realizado por dez anos. O valor investido deve chegar a R$ 11 bilhões, também de acordo com a Renova.




O Rio Doce hoje


Quase três anos após a tragédia de Mariana, o Rio Doce está longe de ser considerado “limpo”. De acordo com especialistas, a condição do rio não era boa mesmo antes do desastre de Mariana. “O Doce já estava totalmente 'detonado' antes mesmo do desastre. Havia indústrias que poluíam. Nunca se bebeu água do Doce. Foi por conta de um desastre sem precedentes que se olhou para o rio”, diz Gisela Forattini.

A diretora da ANA aponta que, no momento, a água do Rio Doce é “absolutamente tratável para distribuição”. “Ela tem que ser tratada e no momento ela tem condições para isso. Havia um receio maior dos impactos”.

Para o presidente da Renova, Roberto Waack, é preciso realizar outras ações para que o Rio Doce seja recuperado. “No momento temos alguns desafios como tirar a lama da hidroelétrica de Risoleta Neves. Já recuperamos 14 estações de água e entregamos seis adutoras. Porém, o Rio Doce só vai se tornar limpo se problemas como dos 80% dos efluentes que são despejados nos rios forem solucionados. Isso é com as prefeituras locais”, afirma

O levantamento de qualidade das águas feito pela Fundação Renova em dezembro de 2017 mostra que a situação é muito melhor do que na época do desastre, mas pior do que a média histórica de antes da tragédia e próximos aos limites aceitáveis. Waack aponta que alguns índices atuais estão acima da média história por causa da época de chuvas. Confira abaixo:




  • Turbidez (NTU)

    07/11/2015: 435.400

    Média histórica antes do desastre: 57,1

    Limites deliberação normativa: 100

    15/12/2017: 178,3

  • Oxigênio dissolvido (mg/L)

    07/11/2015: 6,8

    Média histórica antes do desastre: 8,1

    limites deliberação normativa: 5,0

    15/12/2017: 7,0

  • Condutividade elétrica (μS/cm)

    07/11/2015: 244,8

    Média histórica antes do desastre: 50,6

    limites deliberação normativa: 0

    15/12/2017: 67,3

  • pH

    07/11/2015: 7,8

    média histórica antes do desastre: 6,9

    limites deliberação normativa: 9

    15/12/2017: 7,3




Danos Irreparáveis


Mesmo com os esforços para o monitoramento, há alguns danos que são irreparáveis. De acordo com a representante da SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro, um desses danos estão em valores imateriais de comunidades indígenas na região, como os povos indígenas Krenak. “Toda mulher Krenak, ao engravidar, faz banho nas águas correntes do Rio Doce para conectar os seus futuros filhos aos seus ancestrais. É um momento de fé. E, embora seja disponibilizada a água corrente em tanques, não é a água do rio. Claro que há a reinvenção, até porque a água se reinventa. Mas são valores culturais que se perdem; e mitigação de danos, mesmo com esforços, não os recupera”, afirma.

Moradores da região de Bento Rodrigues também acreditam que alguns danos causados pelo desastre são irrecuperáveis. “Só o trauma causado pelo susto que passamos e o fato de não convivermos no nosso ambiente já nos deixa com o sentimento que algo foi perdido”, diz o presidente da Associação de Moradores de Bento Rodrigues, José do Nascimento de Jesus.

Morando em uma casa cedida pela Renova em outro bairro de Mariana, Nascimento diz que, quando vê o Rio Doce, fica triste. “É uma tristeza ver que o meio ambiente está devastado e ver que a vida que levávamos não vai mais voltar”, completa.

A auxiliar odontológica Mônica dos Santos, também moradora da região atingida pelo desastre, compactua com a mesma opinião de Nascimento. Ela disse que, visualmente, não consegue ver qualquer evolução na qualidade do Rio Doce. “Onde não tem lama de rejeito, só há mato plantado pela Renova para conter a lama. Minha casa ou o que sobrou do terreno, hoje, está coberto de mato”.

Mônica diz que muitas pessoas chegaram a desenvolver depressão após o desastre. “Não é só idoso. É jovem e até criança. Eu não tenho expectativa de que as coisas voltem ao normal. Nem no rio, nem na vida, nem na comunidade”, desabafa.

Esse quadro de depressão em consequência ao acidente foi descrito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em estudo divulgado em março, pesquisadores apontam que cerca de 30% das pessoas atingidas pela tragédia tiveram problemas de depressão. O percentual é cinco vezes superior à média nacional. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2015, 5,8% dos brasileiros tinham depressão (11,5 milhões de pessoas).

O presidente da Renova, Roberto Waack, reconhece que, de fato, há perdas irreparáveis e que o primeiro passo para superá-las é o reconhecimento dessas questões. “As questões imateriais e algumas relacionadas à biodiversidade não há como reparar. A saída para isso é criar políticas de compensação. Depois de reconhecer, você tem que, em conjunto com as pessoas que foram atingidas, saber o que pode ser feito”, diz.

Expediente


Reportagem: Edgard Matsuki. Colaborou Luiz Cláudio Ferreira.

Edição: Carolina Pimentel, Ligya Carvalho e Noelle Oliveira

Design, infografia e implementação: Alexandre Krecke e Marcelo Nogueira