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O Tancazo: o golpe fracassado de 29 de junho

Criado em 10/09/13 23h44 e atualizado em 02/01/15 12h56
Por Maurício Brum Fonte:Especial para o Sul21

“Faço abrir a porta sul de La Moneda e cruzo pelo interior, até a porta principal do lado norte, que também faço abrir. Nesse momento chegam à calçada da rua Moneda, em frente à porta principal do Palácio de Governo, efetivos do Regimento “Buin”, que tinham a missão de atacar os amotinados desde o norte. [Este regimento] é encabeçado pelo General Augusto Pinochet, chefe do Estado Maior Geral do Exército, em uniforme de combate, e o Coronel Geiger, comandante da unidade. Pinochet me abraça”. (das Memórias de Carlos Prats)

Neste golpe que não foi, Pinochet ainda é uma figura secundária, e parece estar ao lado dos que defendem o governo. Em 29 de junho de 1973, quando o Regimento de Blindados Nº 2 se sublevou sozinho contra o governo de Salvador Allende, o general Augusto Pinochet ainda era um sujeito desconhecido pela maior parte dos chilenos. Acima dele não estavam somente o Ministro de Defesa e o Presidente: mesmo dentro do Exército, Pinochet também precisava responder a ordens superiores. Carlos Prats continuava sendo o comandante-em-chefe. E, nesse conturbado junho santiaguino de quatro décadas atrás, Prats mantinha-se como um ferrenho defensor da Constituição. Acreditava que, enquanto existisse um regime legal e democrático no Chile, as Forças Armadas não tinham qualquer função política que não fosse sustentar o governo diante das ameaças.

Tancazo e esposa ainda jovens
Tancazo e esposa ainda jovens (Sul 21)

Esse pensamento fora tecido três anos mais cedo, pelo comandante anterior, o general René Schneider. “A Constituição não define as Forças Armadas como opção ao poder”, lembrava aos colegas. “Pelo contrário, elas são uma garantia de funcionamento do sistema. Tornar-se uma opção ao poder fazendo uso das armas que nos são entregues pelo Estado implica uma traição ao país”. O general Schneider foi assassinado no final de outubro de 1970, pouco antes de Allende receber a faixa presidencial. Sua morte fazia parte de uma estratégia desesperada para criar uma conjuntura que impedisse a posse. Os artífices do crime previam uma inquietação militar, conflitos nas ruas e, finalmente, uma intervenção dos fardados. O tiro saiu gloriosamente pela culatra: o sucessor direto de Schneider era Carlos Prats, cujas convicções eram parecidas.

Em 1970, Prats mantivera as garantias de que a sucessão aconteceria nas normas ditadas pela Constituição. Não houve aquartelamento nem tanques nas ruas, e Salvador Allende pôde entrar em La Moneda. Enquanto Prats esteve à frente do Exército, todas as crises enfrentadas pelo governo foram administradas em conformidade com a “Doutrina Schneider”. Mas, em meados de 1973, o comandante-em-chefe já estava desgastado, era atacado sistematicamente pela imprensa conservadora e se debatia contra casos de insubordinação. Estava claro que nem todos, dentro do Exército, pensavam como Schneider e Prats. Pinochet, embora ainda não se soubesse, era mais um contra os legalistas. Não deixava transparecer. Embora já tivesse apoiado outros movimentos sediciosos no passado, nunca fora proeminente o bastante para ser descoberto. Conseguia levar um jogo duplo para nunca se afastar do poder. Naquela manhã de 29 de junho de 1973, com um bizarro e esvaziado golpe em andamento, Pinochet não tinha a importância necessária para apoiá-lo. Manteve a máscara. E deu um abraço em Prats.

As crises de junho: pavimentando o caminho do golpe

Muitos pontos de inflexão vinham se acumulando havia meses. Diante dos problemas econômicos causados pelos boicotes estrangeiros (sobretudo dos Estados Unidos), pelas sabotagens internas e também pela dificuldade do governo em lidar com o apressado plano de estatizações que executava, a sociedade chilena se dividiu ainda mais. A inflação saiu do controle. A partir de abril de 1973, passou a exceder 1% ao dia. O desabastecimento do comércio, em grande parte causado pelo açambarcamento criminoso dos produtos nos armazéns, só contribuía para a explosão dos preços. Em meio a isso, os grupos paramilitares de ultradireita se tornaram mais ativos para semear o terror e precipitar um cenário de quebra institucional. As organizações armadas de esquerda responderam às ameaças, e os confrontos nas ruas se tornaram frequentes. A situação recrudesceu ainda mais em junho – os fatos passaram a ocorrer em vertigem.

No dia 15, durante um desses conflitos, o exilado brasileiro Nilton da Silva foi morto em por nacionalistas conservadores. No dia 18, o oposicionista Partido Democrata Cristão (PDC) fez aprovar duas “acusações constitucionais” contra os ministros do Trabalho e de Mineração. Na prática, como a oposição controlava o Congresso, tais acusações se davam por razões nem sempre comprovadas. Serviam apenas para forçar a renúncia dos nomes indicados por Allende, aprofundando as crises. Com as duas pastas desocupadas, subia para nove o número de ministros derrubados pelo Legislativo por qualquer pretexto. O PDC se distanciava de sua ala moderada, que pregou o diálogo desde o início, e flertava cada vez mais com o golpe. Em 20 de junho, foi a vez do Partido Nacional (PN) – o mais conservador do país – aparecer, lançando uma nota agitadora à imprensa. O documento garantia que ninguém mais era obrigado a respeitar um governo “que deixa de ser legítimo”.

O recado foi prontamente entendido pelos dois grupos paramilitares mais fortes de oposição, a Frente Nacionalista Patria y Libertad e o Comando Rolando Matus, este ligado diretamente ao PN. Na madrugada do dia 22, eles redobraram a intensidade de seus ataques e realizaram a série mais organizada de atentados vista até ali: uma carga de dinamite foi estourada no escritório comercial da Embaixada Cubana, as sedes do Partido Socialista e da televisão pública chilena foram assaltadas, a casa do embaixador soviético sofreu um atentado a bomba e uma granada foi atirada contra a residência de visitantes estrangeiros da Presidência da República. Já no dia 25, o jornal El Mercurio criticou os oficiais militares por tentarem manter o regime constitucional, assegurando que, naquelas circunstâncias, a intervenção da caserna não seria considerada um golpe.

Batidas em sindicatos e palestras antimarxistas

Apesar do editorial do Mercurio, boa parte dos militares já trabalhava contra o governo. Seguindo uma lei de controle de armas que a oposição fez passar em fins de 1972, membros da Força Aérea passaram a invadir com truculência sedes de sindicatos, fábricas e partidos governistas em busca de equipamentos bélicos, geralmente sem encontrá-los. Diziam possuir denúncias, mas o teor político das invasões era evidente: segundo denunciou o líder socialista Carlos Altamirano, entre julho e setembro de 1973 houve 75 batidas para buscar armas; apesar de os atentados terroristas virem dos grupos de oposição, apenas três dessas invasões foram realizadas em sedes da ultradireita.

Na Marinha, os oficiais subalternos também agiam. Embora o comandante-em-chefe Raúl Montero fosse da linha constitucionalista, seu subordinado direto, o almirante José Toribio Merino, conspirava nos bastidores. A partir de maio, Merino organizou uma série de palestras em navios e escolas de guerra, exacerbando o nacionalismo dos recrutas e inoculando valores antimarxistas. Em sua peroração, garantia que o Peru estava em vias de iniciar um conflito contra o Chile para recuperar territórios perdidos na Guerra do Pafício (encerrada noventa anos antes, em 1883) – e que os comunistas chilenos trairiam a pátria. Em 11 de setembro, quando veio o levante militar bem-sucedido, Merino deu um golpe interno na Marinha, manteve Raúl Montero em prisão domiciliar e se autodesignou comandante da Armada.

Mas, mesmo com as flagrantes tendências da Força Aérea e a situação incerta na Marinha, em junho o Exército permanecia firme com o regime constitucional. Era evidente que nenhum golpe teria futuro sem o apoio do maior contingente militar – e era ainda mais claro que esse apoio não viria com Carlos Prats lá. O Exército Chileno nascera de uma rígida formação prussiana e suas quebras de comando eram raríssimas (como se veria no 11 de setembro). Assim, o caminho para derrubar Allende envolvia derrocar primeiro Prats, que se tornou uma das figuras públicas mais visadas do país.

Desconstruindo Carlos Prats

No dia 27 de junho de 1973, mesma data em que o Uruguai dissolveu seu parlamento e deu início simbólico à ditadura local, Carlos Prats se viu envolvido num incidente que contribuiu para arranhar sua imagem. O general estava tenso pelas notícias que recebera pela manhã, durante reunião do Conselho de Generais. Enquanto percorria a cidade de carro para cumprir sua agenda, viu como outro veículo emparelhava com o seu, enquanto um dos ocupantes disparava insultos persistentes. Prats logo se recordou do atentado em que René Schneider fora morto: na ocasião, o general tivera o veículo interceptado numa rua da capital. Temendo que as provocações fossem uma manobra diversionista para algo mais grave, o comandante-em-chefe abriu sua janela e cobrou explicações. Como os xingamentos seguissem, pegou sua pistola e atirou num dos pneus do outro carro.

Com os dois veículos parados no meio da rua, Prats constatou aterrado que o motorista era na verdade uma moça com os cabelos presos e óculos escuros, chamada Alejandrina Cox. Enquanto se desmanchava em pedidos de desculpas, uma multidão raivosa e um grande número de fotógrafos surgiu ao redor dos dois carros parados. Seu carro foi cercado, e alguns começaram a riscar a lataria e esvaziar os pneus. A notícia se espalhou. Prats escreveria em suas memórias: “as rádios do governo anunciavam que eu havia sido objeto de um atentado, e as de oposição diziam que eu havia tentado matar uma mulher”. O general foi salvo do linchamento por um taxista que passava pela região. É provável que o estranho incidente de trânsito tenha sido premeditado. O historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira documentou que a subestação chilena da CIA vinha analisando as reações do general diante de diferentes contextos, buscando criar uma situação de constrangimento que o forçasse a abdicar do cargo.

Com efeito, naquela mesma noite um abalado Carlos Prats apresentou sua carta de renúncia a Salvador Allende. O presidente não acatou. Julgava imprescindível o apoio do general. Esta negativa foi a maior responsável pelo fracasso da intentona ocorrida dois dias depois, na sexta-feira, 29 de junho. Isso porque a notícia que tanto preocupava Prats quando se assustou com o carro vizinho dizia respeito justamente a uma insurreição em andamento. Mais precisamente, no Regimento Blindado Nº 2. Ao receber a informação, Prats ordenou a imediata troca do comandante daquele batalhão, o tenente-coronel Roberto Souper, que por sua vez foi avisado no dia seguinte. A ameaça de demissão serviu de gatilho para Souper decidir lançar-se ao golpe de todo modo, mesmo sem apoio nem articulação com outros regimentos.

Os preparativos se deram durante todo o dia 28 e, já às quatro da manhã do 29, os comandados de Souper se aquartelaram. Depois, tomaram as ruas de Santiago dispostos a acossar La Moneda e a casa do presidente. Era um levante desesperado, sem chances de sucesso a menos que outros militares se somassem: apenas cinco tanques e um veículo blindado partiram ao ataque, sem qualquer outro suporte. O episódio ganhou o nome de Tancaço pela imagem dos blindados nas ruas naquele dia. E os primeiros momentos da manhã foram fundamentais para definir os rumos da jornada. Se à frente do Exército estivesse um general golpista, seria fácil vencer a surpresa com a ação e ordenar apoio aos homens de Souper. Carlos Prats sabia disso. Sabia também que precisava dar uma posição clara e rápida, antes que outros regimentos começassem a declarar apoio ao golpe por conta própria.

A Guarda morre, mas não se rende nunca”

Por volta das dez e meia da manhã, já com as lagartas dos tanques rangendo pela capital, Prats correu à Escola de Suboficiais, ao lado de um dos regimentos mais importantes do Chile – o Tacna – e convocou as tropas para combater a insurreição. Muitos vacilaram. Estavam receosos de disparar contra companheiros de armas, mesmo que fosse para defender a legalidade. Prats reafirmou que estava dando uma ordem. “Tenho o dever de reprimir o movimento sedicioso contra o governo. E o dever de vocês é me obedecer. Quem não quiser fazer isso é porque está comprometido com os amotinados. Neste caso, é melhor que me matem, porque eu vou defender La Moneda encabeçando aqueles que queiram me seguir”. O regimento saiu à rua.

Tancazo – Leonardo Henrichsen
Tancazo – Leonardo Henrichsen (Sul 21)

Dos conflitos daquele dia ficou um rastro de 22 mortos, incluindo civis – e apenas três dos que perderam a vida pertenciam ao grupo rebelde. Salvador Allende cogitou chamar o povo para defender o governo, mas foi advertido por Prats sobre um banho de sangue ainda maior. O presidente deve ter lembrado do diálogo dois meses e meio mais tarde, em 11 de setembro, quando também deixou de chamar a população para a resistência. No Tancazo, alguns episódios ficaram famosos. Um deles é a morte do cinegrafista argentino Leonardo Henrichsen, que filmava para uma agência sueca e acabou gravando o próprio assassinato. Outra história conhecida é a frase de um certo tenente Pérez, da guarda policial de La Moneda, respondendo aos pedidos do Regimento Nº 2 para que se rendesse: “La Guardia muere, pero no se rinde nunca, mierda”.

Creative Commons - CC BY 3.0 -

Os sublevados só perceberam que o movimento estava num beco sem saída quando o próprio Carlos Prats surgiu diante dos tanques, arma em punho, informando que comandaria o Exército até onde precisasse para evitar a tomada de poder. Os ânimos sobressaltados que vinham desde a madrugada pouco a pouco se arrefeceram. A cena simbólica da derrota do motim se passou num posto de combustíveis – depois das pretensões tão altas, os tanques agora precisavam esperar pacientemente atrás de uma fila de carros, aguardando sua vez para abastecer antes de voltar à garagem. Às duas horas da tarde, a insurreição já estava sob controle.

A tentativa foi tão desarvorada que o próprio Augusto Pinochet comentaria, em suas memórias: “foi uma ação desconcertante, pois se produziu quando ainda estávamos preparando nosso planejamento e não havia coordenação entre as unidades do país. Esse ato poderia ter posto tudo a perder”. Mas reconheceu: “foi o melhor serviço de exploração que poderia haver” para compreender as táticas de resistência. O episódio também serviu para confirmar a necessidade de afastar Carlos Prats. As pressões para afastá-lo se intensificariam nas semanas seguintes.

Exausto com tantas pressões de todos os lados, Prats renunciaria definitivamente no fim de agosto. Recomendou Augusto Pinochet como seu sucessor, lembrando-se de mostras de lealdade como o abraço no Tancazo. O jogo duplo de Pinochet não tardou a se revelar: apenas dezoito dias após assumir o comando do Exército, ele encabeçaria seu próprio golpe. A traição a Prats seria dupla. Pouco mais de um ano depois do golpe, Pinochet enviou seu serviço secreto em missão a Buenos Aires, onde seu antigo superior havia se exilado voluntariamente após o golpe. Carlos Prats e sua esposa, Sofía Cuthbert, seriam mortos na noite de 30 de setembro de 1974, em um atentado a bomba na capital argentina.

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