Jornalismo público entre arrastões e justiçamentos

Publicado em 14/10/2015 - 13:42

Por Joseti Marques Editor Joseti Marques

Fonte Ouvidora da EBC

A telespectadora Josemari Poerschke fez uma crítica muito consistente a uma reportagem exibida na edição do dia 23/9 do telejornal da TV Brasil, o Repórter Brasil. Ela reclama que uma entrevista com um homem que declara reunir amigos para “reagir a assaltos” no Rio de Janeiro é anunciada como “exclusiva” e que, na opinião dela, isso foi “sensacionalismo”. Josemari criticou também outros aspectos da reportagem. A Ouvidoria considera que a telespectadora tem razão na maior parte de sua crítica e convida você a participar desta reflexão. Entenda melhor a análise assistindo à reportagem aqui.  

Análise da Reportagem

O “Exclusivo”

A primeira crítica é ao selo de “exclusivo” atribuído à entrevista com o homem que declara reunir amigos para “reagir a assaltos”. Como a formação desses grupos que assumem o papel de polícia é de notório conhecimento do público, o destemor do entrevistado sobre a ilegalidade de seu ato não chega a ser algo digno de destaque. Os atos conhecidos como de “justiçamento” ocorrem diante de pessoas que gravam com celulares, de repórteres e fotógrafos dos jornais, e estão explicitamente postados na internet. Os chamados “justiceiros” não se sentem constrangidos e não escondem o rosto em suas ações. Então, o que foi categorizado como “exclusivo” pode ser entendido, também, como publicização dos argumentos desse grupo de que o entrevistado é o porta-voz.

A classificação de um assunto como “exclusivo” aplica-se a fatos de impacto e que podem ter repercussão na opinião dos cidadãos, tendo sido obtidos pela reportagem em primeira mão – o antigo “furo” de reportagem. Mas não podemos esquecer que a prática do “furo” ou do “exclusivo” atende a uma lógica comercial, de disputa pela prevalência sobre os concorrentes, o que não se aplica, pelo menos não da mesma forma, ao jornalismo de uma emissora pública.

A telespectadora considerou, ainda, que ao dizer “reagir a assaltos”, estimula-se uma ação que até mesmo a polícia desaconselha, por colocar em risco a vida da vítima. No entanto, para a Ouvidoria, ao referir-se dessa forma ao ato descrito pelo homem entrevistado na reportagem, o texto atribui juízo de valor e oferece uma espécie de salvo-conduto para uma ação reconhecidamente ilegal – “justiçamento” é crime, mas reação a assaltos é legítima defesa.

A produção de sentido

Esta é íntegra do texto de apresentação da reportagem: “Exclusivo. O Repórter Brasil conversou com um homem que diz estar reunindo amigos para reagir a assaltos no Rio de Janeiro. E pelas redes sociais, grupos ameaçam dar continuidade aos arrastões no próximo fim de semana”. Note-se a forma como os dois grupos organizadores de atos criminosos são referidos nas duas frases. Por óbvio, a segunda parte do texto induz à positivação da primeira parte. Para uma parcela da população que se sente acuada, o “homem que diz estar reunindo amigos para reagir a assaltos” ganha uma aura de justa indignação, favorecendo o sentido de legitimidade de seu ato.

A construção do texto contribui, de forma sutil, para a compreensão de que é aceitável a ação dos “amigos” contra “grupos que ameaçam”, quando tanto uma quanto outra são igualmente criminosas e portanto condenáveis. Não se pode desconhecer que o jornalismo ajuda a produzir sentidos na sociedade; e é na observação do contexto que o jornalismo público consegue distinguir de que perspectiva deve pautar, reportar ou se referir aos fatos.

O contexto

No dia anterior à exibição da reportagem (22/9), a grande imprensa noticiou que um grupo de 30 homens, praticantes de lutas marciais, promoveu uma blitz em um ônibus que liga os bairros do subúrbio carioca a Copacabana e Ipanema, na zona Sul do Rio. Em entrevista a um dos jornais, e que foi reproduzida por diversos outros veículos, um dos homens descreveu assim o perfil alvo do grupo: “moleques de chinelo, com cara de quem não tem R$ 1 no bolso. É óbvio que eles querem assaltar. Tocam o terror, vamos tocar também. É legítima defesa”. A violência contra os “moleques de chinelo” que foram retirados do ônibus com socos e pontapés foi filmada pelos celulares da plateia indignada, mas impotente.

Esses são dados de contexto imprescindíveis ao jornalismo público, ainda mais quando é notório e crescente o esgarçamento da civilidade em uma cidade onde a segurança pública tem agido por provocação, apenas apagando incêndios. É nesse contexto que estão situados os fatos da matéria que estamos analisando; e é deste lugar que o jornalista deve exercer o seu ofício de mediador do interesse público – e o interesse público nem sempre coincide com o interesse do público, em uma população exposta a uma verdadeira pedagogia da violência, através da transmissão diária de horas e horas de programação policialesca na TV.

A entrevista

No conjunto da reportagem de 3'16”, o entrevistado falou durante 1´10” (um minuto e dez segundos é o tempo médio de uma matéria completa no telejornalismo), sem que a edição incluísse uma eventual pergunta ou qualquer intervenção que o repórter possa ter feito na gravação – apenas um texto em off interveio na entrevista para dizer que “Ângelo não aceita o rótulo de justiceiro e diz que não existe uma formação de quadrilha. Para ele, é um ato de legítima defesa, que está previsto em lei.” Isso, sem que houvesse uma informação clara de que o ato anunciado pelo entrevistado é tipificado na lei como crime de formação de quadrilha. Por outro lado, informa-se, mesmo que em discurso relatado, que o “ato de legítima defesa” é previsto em lei.

E o entrevistado segue falando, em tom dramático, relembrando o caso do ciclista esfaqueado na Lagoa e questionando [aos que discordam dele] se é esse o fim que eles querem ter. E assim praticamente termina o assunto que foi alvo da categorização de “exclusivo”, ou seja, a ação dos chamados "justiceiros".

O desvio no assunto

Nos 2'06” restantes, a reportagem refere-se apenas aos “grupos” que promovem arrastões. O termo “justiceiro” foi citado apenas duas vezes na matéria, sendo suavizado para “reagir a assaltos” nas referências ao entrevistado. Para uma reportagem que considera como seu principal elemento uma entrevista em que um homem declara que vai reunir amigos para agir como justiceiro, tecnicamente se deveria continuar informando sobre esses grupos. Mas não foi o que ocorreu.

Na entrada de um quartel da Polícia Militar, uma passagem (momento em que o repórter aparece na matéria) fala sobre as providências das forças de segurança para “evitar a chegada de supostos assaltantes nas praias”, e uma das medidas seria retirar os suspeitos dos ônibus e levar para a delegacia. Tendo-se em conta a ação dos "justiceiros" nos ônibus no dia anterior, como citamos mais acima, uma pergunta (ou referência) não poderia faltar: como se identificam os “supostos” assaltantes? Sem isso, seria o equivalente a fazer vistas grossas para atos de racismo e exclusão social – porque os pobres, em geral, são os negros, os suburbanos e os favelados, mas nem por isso são todos assaltantes. E historicamente a competência da polícia para fazer essa diferenciação não é das melhores.

Sobre o grupo de “justiceiros”, em uma única frase, ainda diante da entrada do quartel da Polícia Militar, informa-se que “a Secretaria de Segurança está monitorando a troca de mensagens, pela internet, dos chamados grupos de justiceiros”. A diferença do tempo dedicado às duas questões – arrastões e justiçamentos – faz pensar que a matéria anunciada como “exclusiva” não era sobre os "justiceiros", mas sobre os grupos dos arrastões, a respeito dos quais não havia qualquer informação nova ou relevante na reportagem.

A memória

Na sequência, a reportagem resgata informações sobre o grupo que promoveu o arrastão. Dos 29 apreendidos, 28 vão continuar internados provisoriamente. A edição emenda uma sequência de imagens de adolescentes cometendo delitos, enquanto no texto em off o repórter dá notícias da ação da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, que vai investigar a responsabilidade dos pais sobre os adolescentes infratores, para saber se foram vítimas de abandono ou de maus-tratos. Para o jornalismo, notadamente o público, o contexto social também é parte da informação. Referir-se, de forma ligeira, a “saber ser os infratores foram vítimas de abandono ou maus-tratos” talvez tivesse impacto positivo se fosse sobre os jovens de classe média que agem como "justiceiros". Mas sobre adolescentes infratores vindos das favelas e subúrbios, soa como ironia.

Equilíbrio precário

Pela discrepância da distribuição do tempo e o desnível das referências aos dois casos de violência e crime – porque tanto os arrastões como os justiçamentos são crimes – a fala da coordenadora do Instituto Uerê, Yvonne Bezerra, fica desqualificada, como alguém que defende o indefensável. O texto que introduz e resume a opinião da coordenadora diz que, “para ela, falta apoio da família e da sociedade como um todo”. Em parcos 26 segundos, não há como sustentar argumentos sobre uma situação tão complexa. O que demonstra a ineficácia do velho paradigma jornalístico de que ouvir os dois lados confere equilíbrio a uma reportagem.

Na opinião da Ouvidoria, o jornalismo público errou na avaliação dos fatos, na elaboração da pauta e na edição da reportagem, mas não quer dizer que o jornalismo do Repórter Brasil seja sensacionalista ou parcial. Outras reportagens sobre o assunto foram exibidas, condenando a atitude de justiceiros, conforme informou a Diretoria de Jornalismo, em resposta à telespectadora que reclamou. No entanto, é preciso ter em conta que o noticiário de telejornais não é acompanhado como se fosse um seriado, o que indica que cada reportagem deve oferecer aos espectadores a compreensão dos fatos em sua totalidade, para que possam se posicionar de forma adequada sobre os acontecimentos. A Ouvidoria gradece a contribuição da telespectadora Josemari Poerschke pela oportunidade da reflexão.

O PÚBLICO NA OUVIDORIA

Nacional FM além das montanhas

Carla Cristine de Rossi Ferreira mora em Brasília, DF, e sugere que o sinal da Rádio Nacional FM chegue a Pirenópolis, uma cidade do interior de Goiás onde ela tem casa: “Sinto falta da rádio quando estou passando temporada lá”, disse ela. A Superintendência de Suporte da EBC explicou que a cidade de Pirenópolis fica a 150 km de Brasília e está situada em uma região muito montanhosa, dificultando a recepção do sinal. Mas informa que os ouvintes têm a opção de ouvir a rádio pela internet, diretamente no site da EBC, www.radios.ebc.com.br/nacionalfmbrasília, ou em outros aplicativos que disponibilizam a sintonia de rádios de todo o mundo.

Que fim levou a janela de comentários?

Walter Medeiros, de Natal, Rio Grande do Norte, é um visitante habitual do Portal da EBC e gosta de comentar e ler o que os outros usuários pensam a respeito dos assuntos postados. Walter escreveu para a Ouvidoria reclamando que os comentários das postagens sumiram: “gostaria de ser informado a respeito do motivo que levou a EBC a excluir os referidos comentários.” Mas o que incomodou o Walter, foi uma solução para o Rider Cesar de Lima, de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Ele reclamou da falta de privacidade nos comentários enviados ao Portal: “Gostaria de dar minha opinião, sem ter que me expor no Facebook”. A Superintendência de Agências e Conteúdos Digitais (Suadi) explicou que a EBC mudou a forma  de receber comentários em suas postagens para poder contemplar pessoas que não têm contas no Facebook ou não querem que seus comentários sejam atrelados a essa rede social. A Suadi informou ainda que a mudança possibilita um melhor acompanhamento e possibilidade de respostas.

Muito bem, mas não esqueça: se você quer fazer uma crítica, sugestão ou elogio, o lugar certo para onde enviar sua mensagem é a Ouvidoria da EBC. As forma de contato estão aí embaixo.

Até a próxima!

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