Água invisível


Cada brasileiro consome um significativo volume de água que não sai das torneiras de casa nem do trabalho. Isso porque a água está presente no processo de produção de vários itens de nossa rotina, mas ninguém vê.

Confira o especial

"Espiava o chão como de costume,
decifrando rastros."


Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos


Continuar lendo


Por Priscila Ferreira

O brasileiro consome de forma direta, em média, 154 litros de água por dia. Os dados são do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento, do Ministério das Cidades. O número é 44 litros maior do que a quantidade que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera necessária para uma pessoa, um total de 110 litros ao dia. Por ano, o consumo médio dos brasileiros está na casa dos 56.210 litros.

Para avaliar o real consumo individual de água de um brasileiro, esses números não são o bastante, pois parte do gasto humano diário com água é “invisível”. Cada brasileiro consome um significativo volume de água que não sai das torneiras de casa nem do trabalho. Isso porque a água está presente no processo de produção de vários itens de nossa rotina como o açúcar, o chocolate, o tecido e a carne.

A água que você não vê

* Indicador mostra a quantidade de água gasta durante toda a cadeia produtiva de cada item de consumo.

Na tentativa de quantificar a água doce “invisível” consumida no mundo, o pesquisador da Universidade de Twente, Arjen Hoekstra, da Holanda, introduziu em 2002 o conceito de Pegada Hídrica, uma ideia para promover a consciência diante da escassez. Trata-se de um indicador, ligado à responsabilidade ambiental, que leva em consideração o uso da água de forma direta e indireta, tanto do consumidor quanto do produtor, e define o volume total de água doce utilizado para produzir os bens e serviços.

Na narrativa de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Fabiano olhava para os bois e outros animais como concorrentes pelo bem raro em meio à profunda seca. “As arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado”, diz trecho do livro.

O avanço da agroindústria e da pecuária colocam, novamente, o gado no foco das atenções do século 21. A produção de um quilo de carne bovina exige, em média, 15 mil litros de água (a pegada para um corte de carne depende de fatores, tais como o tipo de sistema de produção e da composição e origem da alimentação do gado), segundo a organização internacional Water Footprint.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o setor agropecuário é o que, em média, mais utiliza recursos hídricos. No ano de 2006, cerca de 70% da água foi destinada para o setor agrícola, 20% para o setor industrial e 10% para residências.

O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado.

Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos




Navegue por capítulo





Consumo Real


Levando em consideração o consumo indireto quantificado pela Pegada Hídrica, o Brasil, com a sétima economia do mundo, consome 2 milhões de litros de água por pessoa por ano. Para ter ideia da dimensão desse número, na China, a maior economia do planeta, a Pegada Hídrica é praticamente a metade: cada pessoa responde por pouco mais de 1 milhão de litros de água por ano. Os números são da Water Footprint.

A Pegada Hídrica incorpora aspectos como o uso indireto em relação à água, é o que explica o analista do Programa de Ciências do WWF-Brasil, Bernardo Caldas Oliveira. “A relação é direta com o nosso padrão de consumo”. Para ele, a ideia é promover um consumo consciente, o que repercute na redução do uso da água.

Para se produzir uma folha em tamanho A4, por exemplo, não se usam apenas árvores. Há a estimativa de consumo de 10 litros de água por folha. Para uma resma, com 500 folhas, são 5 mil litros, o equivalente, em média, ao "gasto consciente" de uma pessoa durante um mês e meio. Já a fabricação de um computador compromete 35 mil litros de água. “Nós não estamos lidando diretamente com a água; mas para aquele bem ou serviço ser ofertado, existe o gasto escondido”, observa o analista.

De acordo com Water Footprint, o uso dos recursos hídricos tornou-se espacialmente desconectado dos consumidores por não existir essa percepção da cadeia produtiva. Mas, afinal, como medir a água virtual?







Marcas da Pegada


Imagine que você caminha em solo seco, assim como Fabiano em Vidas Secas. À medida em que você passa, deixa sobre o solo as suas pegadas. Quanto maior for sua massa corporal, mais profundas serão as pegadas da passagem pela areia.

A Pegada Hídrica avaliará, justamente, as marcas deixadas pelo homem no consumo de água. Por ser um indicador multidimensional, mostra os volumes de água por fonte e por tipo de poluição.

Fabiano meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado, o alo cheio a tiracolo.(...) Espiava o chão como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos.

Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos

A Pegada Hídrica será azul, quando se referir ao consumo de água superficial e subterrânea ao longo de sua cadeia produtiva. Nesse caso, refere-se à perda de água disponível em uma bacia hidrográfica. Essa perda ocorre quando a água evapora, retorna a outra bacia ou ao mar, ou quando é incorporada a um produto.

A Pegada Hídrica será verde quando se referir ao consumo de água de chuva, desde que não escoe. De acordo com a Water Footprint, a distinção entre as pegadas hídricas azul e verde é importante. Isso porque os impactos hidrológico, ambiental e social, bem como os custos de oportunidade referentes ao uso de águas superficiais e subterrâneas para a produção, diferem muito dos impactos e custos do uso da água da chuva.

Enquanto as pegadas azul e verde têm relação com a disponibilidade de água, a pegada cinza se refere à poluição e é definida como o volume de água doce necessário para diluir a carga de poluentes. “Além da água já gasta para lavar uma louça, por exemplo, há o gasto de água para diluir o detergente utilizado nessa lavagem. Por isso, a Pegada Hídrica mostra de forma mais abrangente o consumo de água utilizado nos processos”, avalia Bernardo Caldas.




Consumo consciente


O Manual de Avaliação da Pegada Hídrica da Water Footprint diz que os consumidores também são responsáveis pelo uso indireto dos recursos relacionados ao padrão de consumo. De acordo com o estudo, os consumidores podem reduzir suas pegadas hídricas diretas adotando medidas já amplamente divulgadas, como fechar a torneira durante a escovação dos dentes, fechar o chuveiro nos intervalos do banho, utilizar válvulas de descarga eficientes e chuveiros que economizam água.

Para gerar mudança na Pegada Hídrica indireta, o relatório sugere ao consumidor algumas alternativas: mudar o padrão de consumo, substituindo um produto que tenha Pegada Hídrica grande por outro que tenha uma Pegada Hídrica menor. Isso é possível, por exemplo, ao diminuir o consumo de carnes na alimentação ou ao optar por roupas feitas de tecidos à base de fibras sintéticas ao invés de algodão.

Outra possibilidade é optar por produtos que tenham pegadas hídricas relativamente baixas ou, ainda, por consumir itens que não sejam originários de áreas com escassez de água. Para que isso ocorra, no entanto, é necessário que os consumidores tenham acesso às informações para que possam fazer suas escolhas.

Para a Water Footprint o importante é que os consumidores se sintam responsáveis pela sua Pegada Hídrica e tomem medidas para assegurar que ela seja sustentável. Desse modo, os produtores serão estimulados a fabricar produtos ecologicamente corretos e a criar uma rede de corresponsabilidade.

Empresas também podem reduzir suas pegadas hídricas ao diminuírem o consumo de água em suas próprias operações e diminuir a poluição hídrica. De acordo com o manual, ao se evitar a evaporação, a Pegada Hídrica azul pode ser eliminada. Ao reduzir a produção de água residual e ao tratá-la, a Pegada Hídrica cinza também pode ser evitada.

Paralelamente ao uso indireto da água, o coordenador do grupo de pesquisa Água e Ambiente Construído da Universidade de Brasília (UnB), Daniel Sant’Ana, defende que é necessário evoluir em soluções mais simples relacionadas, por exemplo, aos aparelhos hidrossanitários. “Quando compramos uma lâmpada ou algum aparelho eletrodoméstico, há um selo com indicação da eficiência do equipamento e do consumo de energia. Entretanto, não encontramos a mesma situação ao adquirir uma torneira, chuveiro ou vaso sanitário”, pontua. Ele se diz favorável ao selo também nos aparelhos hidrossanitários para munir de informação o consumidor que quer optar pela versão mais sustentável.




Exportação do Invisível


Uma das questões levantadas nos estudos sobre água virtual é a exportação “invisível” dos recursos naturais de uma região. Muitos países não têm a quantidade necessária de água doce para atender o consumo interno, mas exportam produtos que consomem indiretamente esse bem. De acordo com Bernardo Caldas, “mantém-se o impacto e exporta-se a água”.

O comércio indireto de água virtual tem ganhado espaço nas discussões entre as economias mundiais. Ao exportar um quilo de carne bovina, o Brasil tira cerca de 15 mil litros de água de seus recursos, (levando em consideração fatores como a quantidade de água usada na produção da ração que alimentará os bovinos) e envia para consumo em outro país. Ao todo, segundo a Water Footprint, o Brasil tem 9% de sua Pegada Hídrica total fora das fronteiras do país.

Nos Estados Unidos, a Pegada Hídrica de um cidadão é de 2,8 milhões de litros de água por pessoa por ano. Desses, cerca de 20% são externos. Segundo a Water Footprint a maior parte desse volume de água é originária da China.




Desafios


Conhecido por ser o Planeta Água, a Terra é constituída por 71% do elemento. Entretanto, apenas 2,53% desse volume referem-se à água doce. De acordo com estudos do Banco Mundial, o Brasil é o país que mais detém recursos renováveis de água doce: 13,22%. Essa informação, no entanto, diz respeito apenas ao volume de água doce existente no país. Não leva em conta a qualidade, a potabilidade e, até mesmo, a dificuldade de acesso à água. Além disso, sua distribuição entre os estados ocorre de modo desigual.

Mesmo já sofrendo com conflitos pelo uso da água doce, a América do Sul tem a maior reserva de recursos hídricos do mundo. Para o analista da organização não governamental WWF-Brasil, Bernardo Caldas, a impressão de abundância gera a sensação de que o recurso é ilimitado, o que dificulta a assimilação da importância na mudança do consumo. Por isso, algumas ferramentas e aplicativos estão em desenvolvimento para auxiliar o consumidor na economia de água.

A WWF tem trabalhado no desenvolvimento do Water Risk Filter (WRF). Trata-se de uma ferramenta online gratuita que além de ajudar os usuários a avaliar e mapear riscos hídricos, oferece também respostas para mitigá-los.

De acordo com a coordenadora de projetos do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV, Mariana Nicolletti, a Pegada Hídrica tem sido debatida e trabalhada também pelas empresas no Brasil. A especialista da FGV avalia que o indicador não é um tema tecnicamente simples de se implementar e elaborar, além de demandar tempo para o levantamento de informações e sistematizá-las. "Entretanto, as empresas estão aprendendo a fazer de forma mais sistemática essas análises de ciclo de vida que envolve a Pegada Hídrica. É um importante olhar complementar corporativo de todos os processos produtivos".

Expediente


Reportagem: Priscila Ferreira
* Colaborou: Luiz Cláudio Ferreira

Edição: Ana Elisa Santana, Carolina Pimentel, Ligya Carvalho, Luiz Cláudio Ferreira e Noelle Oliveira

Design, infografia e implementação: Alexandre Krecke, Cid Vieira, Daniel Dresch e Samara Prado