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As disputas internas da Marinha matam um militar

Criado em 10/09/13 22h43 e atualizado em 02/01/15 12h56
Por Maurício Brum Fonte:Especial para o Sul21

Araya Peters com Salvador Allende: o único militar autenticamente amigo
Araya Peters com Salvador Allende: o único militar autenticamente amigo (Sul 21)

Poucos chilenos realmente sabiam quem era o capitão Arturo Araya Peters antes da madrugada de 27 de julho de 1973, quando vários tiros foram disparados contra sua residência em Santiago. Ajudante-de-ordens do presidente Allende para assuntos da Marinha, o militar foi morto na sacada de casa após um atentado da Frente Nacionalista Patria y Libertad, de ultradireita. Mas isso só seria confirmado muito depois. Nos dias que se seguiram à morte, o crime deu margem a uma guerra de versões que não foi solucionada até três décadas mais tarde.

A morte de Arturo Araya golpeou o governo de forma absolutamente inesperada. Factotum mais antigo de Salvador Allende, o representante da Armada junto à presidência era possivelmente um dos militares mais próximos a ele – um dos raros homens de farda de quem o mandatário podia se considerar amigo sem qualquer reserva. Apesar dessas ligações, o episódio foi usado para atacar o governo, com a imprensa de oposição dando eco à história de que elementos ligados à Unidade Popular haviam promovido o atentado com fins escusos.

Julho havia sido um mês de muitas articulações de bastidores. Depois das tormentas de junho, que incluíram até uma tentativa rocambolesca de golpe de Estado com tanques de um único regimento saindo às ruas de Santiago (o famigerado Tancazo, desmantelado em poucas horas), agora era a vez das conversas e das bravatas. As ameaças começaram a se fazer concretas nos últimos dias do mês. A partir de 23 de julho, os grupos extremistas de direita passaram a realizar uma média de 24 atentados terroristas por dia, um por hora, até o golpe de 11 de setembro.

Em 25 de julho, dois dias após o início da ofensiva terrorista, eclodiu uma nova greve de proprietários de caminhões, nos mesmos moldes do movimento de outubro de 1972, que admitira ter a intenção de desestabilizar o governo. Se no final do ano anterior foi possível contornar a paralisação e tentar uma forma de sair da crise, esta nova greve já não seria interrompida antes do levante de Augusto Pinochet.

Enquanto a convulsão social atingia seus últimos estágios antes do golpe, a divisão ideológica no seio das Forças Armadas se fazia ainda mais evidente. Na Marinha e no Exército os comandantes ainda eram da linha constitucionalista – o almirante Raúl Montero e o general Carlos Prats, respectivamente -, mas abaixo deles os oficiais golpistas vinham ganhando cada vez mais influência. Ainda no início de julho, o próprio Prats havia registrado em seus diários a certeza de que o Serviço de Inteligência Militar (SIM) havia interrompido qualquer investigação contra os grupos paramilitares opostos ao governo. Impotente frente à insubordinação, o general voltava a contemplar a hipótese de renunciar. Sabia que sob seus pés um golpe estava em gestação, sem que pudesse evitá-lo:

“O SIM desde vários meses só trabalhava os antecedentes que recolhia sobre o extremismo de esquerda, mas não dava a conhecer os movimentos do extremismo de direita. Prova evidente disso era que o amotinamento do Regimento Blindado [o Tancazo] passou inadvertido para o SIM, sendo que o Patria y Libertad estava comprometido com o movimento. [...] Minha consciência profissional me fazia descartar toda ação pessoal que pudesse provocar um cisma institucional, porque estava decidido a não ser eu o responsável por dividir o Exército. Esta responsabilidade histórica era contrária a meus princípios, ainda que eu soubesse que minha fidelidade a eles jogava contra meu interesse pessoal, favorecendo, lenta mas inexoravelmente, a causa golpista”. 

Arturo Araya atrás, à direita
Arturo Araya atrás, à direita (Sul 21)

Em suma, mesmo sob líderes legalistas, as principais forças militares já estavam preparando o cenário para o golpe, aguardando o momento em que – à força ou pelos trâmites normais – esses comandantes fossem substituídos. Foi nesse cenário que se deu o assassinato de Arturo Araya, e é apenas recordando esses conflitos que se compreende como a morte de um edecã francamente favorável ao governo pôde ser usada contra esse mesmo governo. Foram as próprias instituições militares, através de agentes conspiradores, que comandaram as investigações à época, forjando provas para jogar a culpa na Unidade Popular.

Naquela mesma madrugada de 27 de julho, dois oficiais do serviço de inteligência percorreram as delegacias de Santiago atrás de um bode expiatório a quem atribuir a culpa do assassinato. Encontraram o eletricista Luis Riquelme Bascuñán, simpatizante do governo e detido por embriaguez. Torturado e ameaçado, Riquelme deixou escapar uma “confissão” em que se assumia como autor do atentado, com um extra: a trama teria sido liderada pelo antigo chefe da escolta de Salvador Allende. Além do depoimento fabricado, os fardados anexaram à ficha de Riquelme um carnê falso do Partido Socialista, reforçando sua suposta relação com o governo.

No entanto, em simultâneo à investigação militar, o departamento de polícia civil também iniciou uma auditoria, determinando que o assassinato fora obra de militantes do Patria y Libertad, usando armas facilitadas pela corrente golpista da Marinha. Essa versão era mais próxima da realidade: seria reafirmada em 2003, como parte dos inquéritos judiciais realizados após a redemocratização do Chile. Essa nova investigação, mais recente, determinou que Arturo Araya saiu à sacada de casa após ouvir estrondos na rua. Quando se fez visível, o capitão foi alvo de cinco tiros de pistola dos extremistas, que na verdade serviam para cobrir o tiro fatal de um franco-atirador posicionado do outro lado da rua.

Os resultados do inquérito de 2003 deixaram clara a função daquele atentado: assim como ocorrera em 1970, quando o general René Schneider fora assassinado às vésperas da posse de Allende, grupos de extrema-direita organizaram o ataque tentando atribuí-lo à esquerda, para jogar a opinião pública contra a Unidade Popular. No caso de Arturo Araya, porém, a estratégia estava mais afinada – apesar de a polícia civil ter identificado os autores do crime na época, a imprensa de oposição seguiu dando crédito apenas à investigação enviesada dos militares. Nas palavras de Jesús Manuel Martínez, biógrafo de Allende: “Desta vez o aparato midiático não falhou como em 1970: [a imprensa] blindou o relato e seguiu acusando a esquerda e o governo, até o ponto de confundir pessoas muito próximas do comandante assassinado”.

Mesmo assim, uma questão parecia mal resolvida: por que a escolha de um personagem até ali tão secundário como Arturo Araya? O fato de ser um personagem ainda desconhecido do grande público ajuda a explicar, pois causava um escândalo muitas vezes menor (e mais fácil de ser manipulado) do que a morte de um nome mais presente nas manchetes como Carlos Prats ou Raúl Montero. A amizade do ajudante-de-ordens com o presidente também ajuda a alcançar uma resposta. Araya estava a ponto de completar dois anos e meio no cargo, o que lhe valeria uma promoção para o posto de almirante, colocando-o na elite da Marinha. Num momento em que os grupos golpistas tentavam assumir o controle da Armada, não interessava em nada um novo almirante favorável ao regime democrático, que daria mais suporte à doutrina defendida por Raúl Montero. Sem Araya, foi muito mais fácil dar o golpe interno que a Marinha viveu em 11 de setembro – quando Montero foi mantido em prisão domiciliar e o golpista José Toribio Merino assumiu, à revelia, o comando da Armada, garantindo o apoio naval ao levante encabeçado por Pinochet.

Na manhã decisiva do golpe, isolado em La Moneda, o presidente Salvador Allende saudaria apenas dois militares em seu último discurso antes de encontrar a morte, exaltando as convicções democráticas que ambos sustentaram até o fim. Um deles era René Schneider, morto por assegurar a posse do presidente. O outro era Arturo Araya.'

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