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Trecho da BR-404, na divisa entre Piauí e Ceará, onde se inicia um longo caminho de estrada de terra até o município isolado

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Disputa por território atrapalha a chegada de recursos e desenvolvimento

Criado em 15/10/12 16h02 e atualizado em 15/10/12 16h14
Por Guilherme Pavarin Fonte:Agência Pública

Terra de Ninguém - 4
Trecho da BR-404, na divisa entre Piauí e Ceará, onde se inicia um longo caminho de estrada de terra até o município isolado (Foto: Agência Pública)

Uma tradução disso está bem no chão de Cachoeira Grande: o asfalto não chega porque não se sabe qual estado é dono do chão. Para quem sai do Piauí, o distrito fica na continuação da BR-404. Até o início da área de litígio, poucos quilômetros antes da entrada para Cachoeira Grande, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes do Piauí (DNIT-PI) asfaltou. Mas, quando surge a placa da divisa entre os dois estados, o asfaltamento some. A justificativa é que o órgão “não tem prerrogativa legal para fazer a obra”.

Enquanto a situação não for esclarecida, nem o DNIT-CE vai asfaltar o trecho. A partir da divisa, então, são centenas de quilômetros de estrada de terra. Ramificados, esses caminhos tortuosos levam a Cachoeira Grande e, depois, desembocam em várias comunidades isoladas, onde a cidadania ainda não apereceu. Todas elas, mesmo estando a muitos quilômetros de distância de Poranga, são consideradas parte do município cearense. Mas somente nas proximidades da zona urbana o asfalto reaparece.

Às 9h do dia 19 de agosto, a lavradora Antônia de Souza, de 33 anos, já está no segundo carrinho do dia. Sob sol forte, ela apoia os pés descalços sobre uma base de cimento, curva o tronco e puxa o balde preso à ponta da corda. Despeja a água em uma vasilha. Ajeita o cabelo, a alça do vestido roxo, e refaz o processo. A seguir, outro recipiente. Puxa a corda. Enche. Repete. Os minutos passam. Antônia, concentrada, permanece em silêncio. Completa com a quarta vasilha o carrinho de mão e o empurra por cerca de dois quilômetros até sua casa, despeja a água em baldes e, sem descanso, regressa ao poço para buscar outro tanto. Até o meio-dia, serão mais quatro viagens.

A água que Antônia puxa e empurra é preciosa: serve para que ela, o marido e os cinco filhos – de 6 meses a 12 anos – tomem banho, se alimentem e lavem as roupas. “Pra beber num dá.” O abastecimento dura um dia. Na manhã seguinte, realizará o mesmo ritual. O lugar onde mora remete a paisagens desérticas. A região enfrenta uma das piores secas dos últimos 60 anos. A água é um luxo.

O problema é antigo. O centro de abastecimento, constituído por dois poços, nunca foi suficiente para as 167 famílias da localidade. Próximo à entrada do distrito, Antônio Almeida, de 44 anos, dono de um modesto armazém que vende de rações a artigos de limpeza, diz que ouve promessas desde 1981, quando chegou ao povoado.

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Não faz muito tempo, por mutirão da associação de moradores, as casas começaram a ganhar encanamentos. A “novidade” pouco adiantou. O abastecimento é tão fraco que dos canos, hoje, não sai nada além de respingos. A situação é de racionamento rigoroso. “Num dia tem, noutro não”, resume ele. Quando tem, pelo período de uma hora em que a água flui, em geral pela manhã, os moradores abrem as torneiras e tentam, gota a gota, estocar. Todos temem pelo pior. Com a falta de chuva, vai diminuindo o já escasso reservatório.

Na entrada de Cachoeira Grande, por contraste à situação árida, há uma imponente caixa d’água, uma espécie de monumento. “Falta só a água”, diz Raimundo Moreira, de 66 anos, tesoureiro da associação de moradores. Quem pode faz um poço particular.

Depois de economizar por alguns anos, Antônio Almeida perfurou uma porção de terra atrás de sua casa para puxar água. “Não é o ideal, mas ajuda”, diz, sentado em sua vendinha, abastecida de refrigerantes e água mineral. “O pessoal aqui não tem dinheiro para isso. Mas tem uma festa semana que vem e vem gente de fora.” (Na semana seguinte, por conta da campanha eleitoral, haveria um evento regado a música e comida de graça. A cidade tinha apenas dois postulantes a prefeito, um do PSDB, outro do PP, e 21 candidatos para nove vagas na Câmara Municipal.)

Isolamento
Poranga tem cerca de 12 mil habitantes, um terço na zona rural. São pessoas que sobrevivem da lavoura em povoados distantes uns dos outros. Gonçalo Correia de Melo, de 58 anos, mora na comunidade de Arraial, junto com outras 70 famílias. Sentado à pouca sombra, na pausa para o almoço, ele diz que não se lembra de estiagem pior que essa. “Este ano não deu pra pegar nem um pouco de feijão.”

A escassez se repete pelos arredores. Poranga é uma das 171 cidades cearenses (de 184) em “situação de emergência” por conta da seca. No Piauí, são 191 de 224. Árvores sem folhas, plantações sem cor, bois com as costelas à mostra e animais mortos na estrada são imagens comuns. Em locais mais afastados, notam-se casas vazias marcadas pela terra batida que, empurrada pelo vento, pinta as paredes brancas de laranja.

São retratos de um profundo isolamento. Segundo os moradores do campo, as ajudas do município são quase nulas. A relação entre prefeitura e comunidades rurais é sedimentada por interesses bem claros. Além de os trabalhadores do campo serem grande parte do eleitorado, o município precisa mantê-los em sua posse para receber uma verba maior dos governos federal e estadual. Vem daí o interesse para haver tanta disputa pela zona de litígio.

No Brasil, de acordo com o programa de Fundo de Participação de Municípios, o repasse de verba para a prefeitura varia de acordo com o contingente. Quanto mais gente, mais dinheiro a cidade recebe. Daí o desinteresse de Poranga de não perder os 66% de seu território exigidos pelo Piauí.

Quando a eleição municipal se aproxima, a campanha é voraz. Cabos eleitorais batem à porta dos moradores, prometem melhorias, pedem para colar cartazes, pintar casas. Em meados de agosto de 2012, já era possível ver o embate em Arraial, Cachoeira Grande e Pitombeiras, todas comunidades pertencentes a Poranga e inseridas na Zona de Litígio. De um lado, pessoas ligadas ao atual prefeito, Aderson Pinho Magalhães (PSDB), há oito anos no poder, se ofereciam para pintar casas com cores do partido e o nome do candidato, o atual vice e também tucano Dr. Cárlisson. Em resposta, o opositor, Professor Adriano (PP), se dispunha igualmente a pintar casas e distribuir cartazes.

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Os aposentados Nasteriano Gregório de Neto, de 73 anos, e Santiago Bezerra, de 94, dizem que as visitas de autoridades acontecem de quatro em quatro anos, quando há eleições (Foto: Agência Pública)

O lavrador José Teixeira, de 53 anos, muito alto e muito magro, com boné de candidato de eleições passadas, deixou sua casa ser pintada. Toda a parte externa foi colorida de azul claro, com tons de amarelo e branco por cima; na entrada, em letras enormes, o nome de Dr. Cárlisson. “Faço isso por consideração. Não sou ligado em política”, diz. Teixeira vive com a mulher e um filho. Neste ano, plantou milho e feijão. Perdeu “95%” por causa da seca. Estima em “uns R$ 200” a sua única fonte de renda, o Bolsa Família. “Não tá dando pra viver, não”, diz, com voz pacata. “Aqui a gente tem muita carência.”

A um longo caminho dali, no povoado de Pitombeiras, os aposentados Nasteriano Gregório de Neto, de 73 anos, e Santiago Bezerra, de 94, dizem que as visitas de autoridades acontecem de quatro em quatro anos. “Nesses últimos oito anos, o prefeito veio aqui uma vez, para abrir as torneiras e derramar água”, conta Nasteriano. “Político só vem para pedir voto”, diz Santiago, que fala e enxerga com bastante dificuldade – e lembra de ter tomado vacina apenas uma vez na vida. “Às vezes os caras dão tantos mil pra garantir tantos votos.”

Também é prática corriqueira prometer empregos, vagas em concurso e até materiais de construção. Numa região de litígio próximo à Granja, no Ceará, uma mulher, que a princípio não queria falar de política, revelou que um vereador lhe prometeu um saco de cimento, quatro anos atrás. Ela votou, e ele nunca mais apareceu. Sem querer dizer seu nome à reportagem, pediu licença e saiu.

 

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