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Funcionários do governo trabalham sem salários em Cachoeira Grande

Criado em 15/10/12 16h15 e atualizado em 17/10/12 11h47
Por Guilherme Pavarin Fonte:Agência Pública

“Aqui todo mundo sabe quem vota em quem, quem apoia quem”, diz uma professora da comunidade rural, que prefere não se identificar. Ela afirma que, na escola na qual trabalha, não se recebe salário há meses e, mesmo assim, ninguém reclama. Os funcionários públicos temem ser perseguidos e perder os poucos benefícios que têm, como o Bolsa Família e o Garantia Safra, voltado para os agricultores familiares de áreas que sofrem com perda de safra por motivo de seca ou excesso de chuvas. Todas as 2 mil famílias identificadas como pobres em Poranga são atendidas pelo Bolsa Família, em média de R$ 150.


Em Saudoso, comunidade minúscula entre Cachoeira Grande e a zona urbana de Poranga, Lúcia Bezerra Britto, de 55 anos, conseguiu há 15 uma vaga como auxiliar na escola local por meio de um concurso oral. Ficou por vários períodos sem salário e, em agosto, estava há quatro meses sem receber. “Colam avisos no mural falando que não tem dinheiro.”

Merendas também não chegam. As crianças sentem fome e reclamam. Quando pode, Lúcia leva alguma coisa de casa para oferecer. Mas não consegue resolver a principal queixa dos alunos, a falta de água. “Não tem água nem para minha família, como vou ajudar?”, diz ela ao lado do marido, Chico, um lavrador que perdeu a safra, e da filha mais nova, de 23 anos, que acabou de ser mãe.

Sem lavoura, sem salário e sem água, ela e o marido dependem da ajuda dos filhos. Três estão em São Paulo, uma no Rio de Janeiro. Todos os dias, ela recebe ligações deles pelo celular – um bem que nunca falta na região. O que mais ajuda trabalha como porteiro em um prédio. Casado, ganhando pouco mais de um salário mínimo, o filho envia ajuda todos os meses. A família compra remédios e sobra pouco. Eles também vendem alguns alimentos e bebidas em um bar improvisado diante da casa, à beira da estrada. Ficam de prontidão para o caso de alguém procurar por uma bebida ou uma fruta. Mas é raro alguém parar.

No centro urbano de Poranga, o hospital que estava sendo construído teve as obras interrompidas há alguns meses. Outros projetos, como quadras poliesportivas, também estão parados. Em ano eleitoral, a única coisa que não cessa são as promessas. O que não é de todo ruim. Os cabos eleitorais ganham uma ajuda financeira que chamam de “simbólica” para trabalhar na campanha – um salário mínimo, valor nada simbólico para a região. Além disso, os favores pré e pós-eleição, além dos empregos públicos proporcionados, têm grande influência na realidade socioeconômica de cidades como essas.

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Identidade dividida
“Ele veio aqui e disse que a gente não morava mais no Ceará.” A aposentada Isabel Inácio do Nascimento, de 66 anos, não lembra bem quando nem como. Sabe que foi entre novembro e dezembro de 2011, o tempo estava seco, a temperatura acima dos 35 graus. Ela se recorda somente de uma prancheta, onde ele anotava tudo o que via. “Foi isso: chegou aqui e falou que agora éramos do Piauí”, diz. “Mas como, sendo cearense toda a minha vida, agora vou ser do Piauí?” Ela balança a cabeça, enérgica, e gesticula violentamente: “Nunca! Nunca!”

Moradora do povoado de Sumaré, Isabel não sabe dizer, hoje, a qual estado pertence. Desde criança vive na mesma casa rústica, à beira da estrada de terra, que diziam ser do distrito cearense de Viçosa. Na hora de procurar serviços, ainda que tivesse de se deslocar por muitos quilômetros, de carona em carro ou moto, sempre foi recebida no Ceará. Desde os últimos dados do IBGE – ao qual o “homem de prancheta” pertencia –, porém, ela e as mais de 20 famílias dali foram contabilizadas como habitantes do distrito de Cocal, no Piauí.

Terra de Ninguém - 1
Lixo espalhado pelo povoado de Cachoeira Grande: não há quem faça o serviço de limpeza nas ruas (Foto: Agência Pública)

 

Os moradores do povoado acreditam que, se passarem para o Piauí, a condição de vida, que já não é boa, vai piorar. “Em Cocal, o posto médico é difícil, falta doutor”, diz José Nascimento, de 30 anos, filho de Isabel. As famílias também temem, sendo cocalenses, perder os benefícios do vale-leite e o transporte escolar.

Isabel mora com o marido, o filho, a nora e dois netos: uma de 4 anos e um de 8, com deficiência mental. Hoje, eles têm direito a um transporte escolar para o garoto, que passa na porta de casa ao meio-dia, de segunda a sexta-feira, levando-o até Juá, cidade do Ceará. “Deus me livre do Piauí!”, diz Isabel.

Situação inversa ocorre nos povoados rurais que pertenciam a Cocal. Os habitantes foram notificados, de modo informal, que passariam a integrar o município de Granja, no Ceará. Em Conduru a notícia foi mal recebida. A diminuta população reclama que o acesso a Granja é difícil. Não há estrada do povoado até a cidade. Para ir a um hospital, teriam de percorrer quase o dobro do caminho que fazem até Cocal da Estação ou Viçosa.

De certa forma, todos os moradores da área de litígio estão acostumados com uma busca dividida de serviços. Dependendo da necessidade, da urgência e da distância, deslocam-se para um estado ou para outro. Em meio a isso, há ainda uma identificação afetiva. Os moradores só abrem mão de sua identidade estadual em troca de mais acesso a serviços essenciais. Do contrário, preferem deixar como estava antes de o IBGE passar. “Apesar do sofrimento, sou piauiense”, resume a lavradora Francimeire Alves Vieira, de 39 anos, de Conduru.

Cocal lembra Poranga pelos problemas que enfrenta. Sua comunidade rural é maioria (53% dos pouco mais de 26 mil habitantes). Desse grupo, nenhuma residência, de acordo com o IBGE, possuía saneamento básico adequado em 2010.

Outra semelhança está na gestão pública. O ex-prefeito José Maria Monção (PTB), que exerceu mandato até 2008, teve recentemente pedido de prisão decretada pela Justiça por irregularidades na prestação de contas identificadas pelo Tribunal de Contas do Piauí. Já o último prefeito eleito, Fernando Sales, teve o mandato cassado em julho por infidelidade partidária, de acordo do decisão do Tribunal Regional Eleitoral. Eleito pelo DEM, mudou para o PSB sem apresentar justificativa. Sales recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral e ganhou o direito de reassumir.

Ao voltar, na segunda semana de setembro, acusou um rombo de mais de R$ 200 mil que teria ocorrido durante os dois meses de mandato do vice, Chico Preto (PSD). “Depois de observar os extratos bancários da prefeitura tomei um susto. Tem dois saques de R$ 70 mil, um de R$ 30 mil e outro de R$ 20 mil, além de transferências de R$ 5 mil, R$ 10 mil e R$ 15 mil reais num só dia”, disse Sales ao diário piauiense O Dia. De acordo com o advogado do prefeito, Raimundo Júnior, o dinheiro sacado era proveniente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (o Fundeb).

Enquanto governava, Chico Preto havia dito à reportagem que a cidade sofria com más administrações e que a maior parte da população buscava atendimento em outra cidade, outro estado, por falta de investimentos da área da saúde. “O pessoal diz: ‘Se vocês são do Piauí, por que vêm pra cá’? Eles são constrangidos.” O povo que está na área do litígio, segundo Preto, só é do Piauí para tratar de documentação e de escola – “todas em péssimas condições”.

Creative Commons - CC BY 3.0

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