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Curuguaty foi conflito que justificou o impeachment do presidente paraguaio

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O que aconteceu em Curuguaty?

Criado em 26/11/12 08h17 e atualizado em 26/11/12 09h27
Por Natália Viana Fonte:Agência Pública

Curuguaty
Curuguaty foi conflito que justificou o impeachment do presidente paraguaio (Natália Viana / Agência Pública)

Atrás das grossas e enferrujadas grades da penitenciária nacional de Tacumbú, na capital paraguaia Assunção, em meio a mais de três mil detentos – a lotação é de 1500 – o camponês Rubén Villalba carrega um peso infinito. Baixinho, barrigudo, de olhos pequenos e pele morena típica do interior paraguaio pros lados do Mato Grosso do Sul, ele é acusado de ser o principal causador da matança de Curuguaty, motivo apresentado para a destituição do presidente eleito Fernando Lugo em junho de 2012 pelo Congresso.

Contra Villalba pesa não apenas o papel que lhe é atribuído na História, do qual tenta desesperadamente fugir, mas a realidade de que está sozinho. Nunca houve na imprensa paraguaia uma só voz que o defendesse; os demais dirigentes da ocupação de sem-terra que, como ele, decidiram resistir à reintegração de posse no dia 15 de junho estão mortos; sua esposa está em prisão domiciliar a 400 quilômetros com o filhos de 7 meses. Todas as evidências consideradas pela investigação da Fiscalía, espécie de ministério público do Paraguai, sobre o massacre apontam para ele. O presidente do seu país, Frederico Franco, chamou-o de assassino e afirmou que ele protagonizou uma emboscada a policiais que resultou na morte de seis deles. No dia, morreram também 11 camponeses.

Leia também as outras partes da série

Parte um - Fernando Lugo governou com o parlamento “mais arisco” da América Latina

Parte dois - A destituição de Lugo, vista do Palácio

Sua captura, em outubro, foi celebrada não apenas pelo presidente.  “Claro que me golpearam qundo fui preso”, conta à Pública, no seu espanhol misturado com guarani, enquanto esquiva-se do olhar dos guardas num canto do presídio – ele está terminantemente proibido de falar com a imprensa. “Havia muita tortura psicológica, ‘você é o que matou fulano, você é do (grupo guerrilheiro) EPP, diziam. Me subiu em cima do meu lombo, nas minhas costas e disse ‘urra’, me parece que eu era um troféu me parece…”

É neste momento que Ruben começa a chorar, ao relatar o pouco que lembra da desocupação do terreno de 2 mil hectares. Não eram incomuns as desocupações do tipo nem que os sem-terra decidissem resistir à tentativa de reintegração de posse, como fizeram Ruben e os outros dirigentes.  O fato de que o grupo possuía escopetas de caça (entre 17 e 20) também era algo comum em desocupações, segundo muitas testemunhas ouvidas pela Pública, entre policiais, camponeses, jornalistas, militares. Mas tudo o que se seguiu foi absolutamente incomum.

“Eu esperava que ia haver uma conversa, ou iam apresentar um titulo de propriedade, ou para falar com a Fiscalía e outras autoridades mais”, lembra Rubén. “O companhero Pindu, esse companheiro Avelino Espínola, esse que conversava, ele pedia documentos da propriedade. Quando começara os disparos eu recebi o primeiro disparo. Me fui ao chão e não entendi mais nada, estava inconsciente”. No meio do tiroteio, Rubén foi acudido por outro integrante da ocupação – “Nosotros los companheiros já se morreram todos”, lembra de ter ouvido – e ficou escondido em uma região montanhosa até ser capturado, três meses depois.

Próximo dali, na ala hospitalar do centro de detenção, de nome “Esperança”, está Néstor Castor, outro dos cerca de 70 sem-terra que ocupavam as terras conhecidas como Marina Cué. Embora contra ele não pese a acusação de ter provocado o massacre, Castor carrega uma repugnante ferida; seu maxilar esquerdo foi destruído por uma bala, e desde aquela manhã seu rosto está parcialmente desfigurado. Na época da entrevista, a parte inferior era amarrada por uma espécie de aparelho dentrário com elásticos. Néstor tem dificuldade de falar e de comer – ainda se alimenta a base de líquidos. Sua operação só foi realizada no dia 23 de novembro, cinco meses depois do ferimento. Ele agora está em recuperação.       

Cástor foi preso no dia seguinte ao confronto, quando procurou um hospital em outro município, depois de fugir do fogo cruzado. Em poucos minutos, chegaram os policiais. “Me sentia mal, e uma vez os policiais me amarraram na cama, eu não podia sair, não podia nem ir ao banheiro”. A enorme dificuldade de falar vence, e neste momento, Castor, também, chora. 

Mas a dor não é só física. Cástor carrega a culpa de ter inadvertidamente dedurado todos os seus companheiros. É que dias antes do conflito ele escreveu de próprio punho uma lista com o nome daqueles que ocupavam o terreno, “para pedir víveres à Secretaria de Emergência Social” do governo federal. A lista, encontrada pela polícia, é uma das principais peças da investigação conduzida pela Fiscalía. Todos os que constam nela – estivessem ou não na hora do conflito – tiveram prisão preventiva decretada e são acusados de homicídio doloso agravado, homicídio doloso em grau de tentativa, lesão grave, associação criminal, coação grave e invasão de imóvel alheio.  

Indiciar indiscriminadamente todos os nomes registrados numa lista rabiscada a caneta não é a única fragilidade da investigação sobre o evento mais importante da história recente do Paraguai. Na verdade, a investigação está sob crescente crítica da opinião pública.

Mesmo depois do informe da investigação ser concluído em outubro, não se sabia o resultado dos exames de autópsia, e nem os de balística. Das cinco escopetas apreendidas, supostas armas do crime, apenas uma se mostrou capaz de atirar; dezenas de invólucros de balas automáticas simplesmente desapareceram. Há indícios de adulteração da cena do crime e dos cadáveres; uma arma que apareceu do nada; depoimentos anônimos; e policiais que mudaram suas versões. 

A investigação, em si, é conduzida por um jovem integrante da Fiscalía, de nome Jalil Rachid, 33 anos, filho de Blader Rachid, ex-presidente do Partido Colorado, assim como o empresário Blas N Riquelme, que usava o terreno e desde 2004 reivindicava na justiça a sua posse, pedindo a retirada dos sem-terra.

Riquelme, empresário para uns, grileiro para outros – a Comissão da Verdade sobre a ditadura de Stroessner apontou irregularidades em terrenos que adquiriu no período  – faleceu dois meses depois do massacre, de uma complicação cerebrovascular. Foi enterrado com honra e glória, o “Don Blas”, homenageado no mesmo Congresso que destituiu Fernando Lugo e na sede do Partido Colorado – o mesmo que votou em peso pelo impeachment.

Viagem a Curuguaty

A Pública viajou até a região de Curuguaty para tentar entender o que se passou naquele 15 de junho. Ouviu diversas testemunhas – de um chefe policial a camponeses foragidos – e encontrou, em pouco mais de dois meses de investigação, um dos invólucros – que a Fiscalía afirma não existirem – de uma bala 5,56 usada em fuzis M16, que estava no local do conflito.

Para chegar até a humilde casa de uma família que tem três filhos entre os acusados da matança, é preciso comer terra. São quarenta minutos de estrada asfaltada e uma de chão batido em um pequeno ônibus que faz a rota local, e depois mais quarenta minutos de moto – o único transporte acessível aos moradores da pequena comunidade que conquistou o sonho da terra ao ocupar, no final da ditadura de Stroessner, terrenos que o Estado ditatorial  havia doado a fazendeiros  – as “terras mal havidas”.

A dona do casebre de madeira, um enfermeira, levava comida até o acampamento conhecido como Marina Cué, onde dois dos seus filhos estavam acampando. Quando soube que haveria uma desocupação, apoiou o filho, Pedro (o nome é fictício) que decidiu ficar. A filha, uma moça bonita de 26 anos com nariz grosso e dentes separados, ficou só 15 dias na propriedade, e saiu. Ficou sabendo do massacre pelo rádio. Mesmo assim, por ter tido seu nome na lista encontrada pela polícia, está acusada de assassinato.

Pedro, que estava um pouco afastado do local onde começou o tiroteio, lembra de ter escutado o primeiro disparo. “Ouvimos um barulho, demos uma volta e olhamos para o outro lado. Aí saímos correnedo pelo pasto, nos escondemos na baixada ao lado de um riozinho”. Junto com outros sem-terra, ele então correu para um monte onde ficou até as 5 horas da manhã do dia seguinte, quando retornou para casa e se tornou foragido da justiça.

A família não sabe, mas nos dias anteriores à desocupação travou-se uma pequena batalha dentro da Polícia Nacional, que acabaria selando seu destino. Segundo um chefe policial que participou da operação – cujo nome não será identificado a seu pedido – a polícia sabia que entre os camponeses tinham escopetas. “Eu disse isso inclusive ao comandante (da Policia – Paulino Rojas), que se levasse mais tempo [para entrar ali] porque era perigoso, porque se morre um policial, a cabeça do comandante também cairia. E se morre um camponês, a mesma coisa”, explica o policial, que participou das discussões de cúpula. “Eu lhe disse que enviasse mais gente de inteligência ao lugar para obter mais dados, para que houvesse mais informação [antes de agir]”. Segundo ele, outros chefes policiais também queriam protelar a desocupação, que afinal aconteceu sob pressão da Fiscalía.

“Eu disse ao comandante, quem está por trás de isso? Por que querem tanto fazer isso se temos tempo para cumprir a ordem de desocupação? Podíamos ter levado um ano inclusive… Podíamos argumentar que a polícia não estava em condições de operar, podíamos dizer muitas coisas”. O seu relato é corroborado pelo depoimento de um policial do Grupo Especial Operativo, que consta na investigação oficial, à qual a Pública teve acesso.

Segundo ele, Erven Lovera, comandante da GEO, também queria protelar a desocupação. “O jefeLovera não queria fazer esse procedimento, ele tinha esse fim-de-semana livre e queria passar o dia dos pais com seus filhos em Assunção, procurou todos os lados para suspender, chamava de cá para lá, mas de todos os lados havia muita pressão de que se tinha que fazer esse procedimento de qualquer maneira”.  Lovera foi o primeiro policial a ser morto. Era irmão do chefe de segurança pessoal do então presidente Fernando Lugo.

Do ponto de vista do governo, porém, a atenção deveria ter sido redobrada – e não foi. Isso porque havia informações sobre a possibilidade de um armar-se um conflito, um teatro, na região que chegaram a altas autoridades do governo Lugo. Miguel Lovera, então diretor da Senave (Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal e Sementes), conta que recebeu informações já em abril. “Eu já havia ouvido rumores semelhantes antes, mas essa informação veio completa. Certos elementos de reputação muito negativa haviam sido vistos na zona. Matadores. Gente a serviço dos donos de terra. Bom, a questão não era apenas que havia ali elementos suspeitos; o rumor já era completo. A informação era: querem produzir um derramamento de sangue para levar Lugo a um juízo político e tirá-lo do poder”.

Outras fontes no governo Lugo confirmam que, meses antes, houvera uma situação semelhante, durante a desocupação de um terreno em Ñacunday, ocupado por cerca de 8 mil famílias sem-terra. Na ocasião, os camponeses foram transferidos para um terreno vizinho, sob intensa crítica da imprensa nacional. “Quando ocorreu o caso Ñacunday nós denunciamos que havia armas de guerra, que havia grupos que se vinham infiltrando e que iam usar qualquer ação da policía para responder. Gerou-se uma situação muito delicada que eu lamento que não sido levada suficientemente a sério, porque faz tempo que gente que quer desestabilizar o governo está buscando provocar este tipo de fato”, afirmou à imprensa Miguel Lopez Perito, chefe do Gabinete de Lugo, no dia seguinte ao conflito de Curuguaty (clique aqui). O líder camponês José Rodriguez,presidente da Liga Nacional de Carperos, confirma: “O Fiscal Geral do Estado, Javier Díaz Verón, e o próprio Presidente da  República, Fernando Lugo, foram advertidos, mas não tomaram as precauções correspondentes”. 

No Cado de Curuguaty, a reintegração foi realizada, embora não houvesse mandato legal para isso. A ordem, emitida pela fiscal Ninfa Aguilar, extrapolou a ordem judicial emitida pelo juiz José Benites, que era de “allanamiento”, um espécie de “averiguação” para verificar se havia pessoas armadas ou invasores. Ninfa Aguilar, que esteve durante anos à frente da Fiscalia regional, fez repetidos pedidos de reintegração de posse ao longo dos anos. Sua ligação com Don Blas é conhecida, segundo um relatório da organização Plataforma de Estudio e Investigación de Conflictos Campesinos. Ela teria atuado como advogada dele em processos de requisição de posse da terra. 

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