Para além da “chapa-branca” e do “armazém de secos e molhados”

Publicado em 17/04/2014 - 16:51

Por Joseti Marques Editor Joseti Marques

Fonte Ouvidoria

A análise de edições do Repórter Brasil (noite), principal telejornal da TV Brasil, chamou a atenção para um aspecto que os usuários dos veículos públicos que recorrem à Ouvidoria costumam definir como “jornalismo chapa-branca”. Não raras vezes percebemos que reclamações que apontam essa característica nem sempre estão clamando em defesa da imparcialidade jornalística, mas defendendo suas próprias convicções político-partidárias, quando a isenção fere suas preferências e a imparcialidade confere distanciamento crítico à narração dos fatos. No entanto, há usuários do sistema que, informados sobre a missão da comunicação pública, esperam dela o que ela promete e reagem ao menor sinal do que consideram “chapa-branquice”, como definiu uma leitora da Agência Brasil.

A consagrada máxima atribuída ao humorista Millôr Fernandes, que diz que “jornalismo é oposição; o resto e armazém de secos e molhados” também corrobora a percepção de que o bom jornalismo é aquele que defende o cidadão das prepotências e das injustiças dos governos opressores – e aí não há meio do caminho: os cidadãos são representados como fracos e oprimidos e os governos como vilãos opressores que devem ser combatidos. Surge daí o que alguns teóricos classificam como jornalismo de denúncia – um assunto amplo que tem ocupado as pesquisas acadêmicas, mas que não é o foco desta reflexão. Em meio a chapas-brancas e armazéns de secos e molhados emerge, frágil, um jornalismo que ainda não encontrou sua verdadeira vocação e pauta – o jornalismo cidadão, ou público, ou cívico, ou que outro nome lhe queiram dar. Este é o jornalismo da EBC, que o público, vez ou outra, avalia como “jornalismo chapa-branca”.

A Ouvidoria é testemunha dos esforços da empresa pública para descolar-se da imagem da extinta Radiobrás, estatal da qual a empresa pública de certa forma é herdeira. Também é notório o fato de que não há, da parte do Jornalismo dos diversos veículos da EBC, qualquer imposição para que se fale bem ou mal de governos ou de qualquer outra coisa, como sabemos que muitas vezes ocorre em empresas de comunicação de mercado. Até mesmo pela ampla liberdade de expressão de que gozam os profissionais da mídia pública, através dos diversos canais que têm à disposição, como redes sociais, representação em Conselhos etc. Muitas vezes, os profissionais da EBC são os primeiros a apontar aquilo que consideram inadequado no trabalho que realizam. Então, o que faz com que se perceba uma tendência a ser “chapa-branca” no Jornalismo da EBC?

A Empresa Brasil de Comunicação-EBC é a gestora dos veículos do sistema público de comunicação - TV Brasil, TV Brasil Internacional, Agência Brasil, Radioagência Nacional e o sistema público de Rádio, composto por oito emissoras. Mas nem todo mundo sabe disso, assim como também não é de amplo conhecimento da sociedade o fato de que os veículos geridos pela EBC não são estatais, dedicados à divulgação das ações “do governo”, como se costuma ouvir dizer, mas aos assuntos de interesse público – o que obviamente não exclui o Estado, fonte principal das ações que provocam mudanças na vida em sociedade. Mas como distinguir o que é interesse público do que é proselitismo político?

Para tentar encontrar as pistas da tal “chapa-branca” que volta e meia aparece por aqui, a Ouvidoria analisou cinco edições do Repórter Brasil (noite), mas é suficiente referirmos a edição do dia 25 de março para exemplificar a fragilidade que indevidamente contribui para a pecha. Certamente, parte da dificuldade se deve à ambiguidade dos textos com que jornalistas dos diversos veículos públicos reportam os acontecimentos. Um exemplo ostensivo de como isso ocorre pode ser observado na forma como a reportagem relatou o fato de o Presidente Nicolas Maduro, da Venezuela, ter prendido três generais da Aeronáutica “suspeitos de planejar um golpe de estado”, como informa a reportagem. Vejamos o texto:

LOCUTOR: O Presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, se reuniu hoje com os ministros das Relações Exteriores da Unasul, a União das Nações Sul-americanas. Os chanceleres tentam mediar a crise no país. Maduro anunciou a prisão de três generais. Quem tem as informações (...)

REPORTAGEM: O Presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, recebeu a delegação de chanceleres enviada pela União das Nações Sul-americanas, a Unasul, hoje no palácio presidencial. Sob o olhar atento do ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, e de outros representantes da região, Maduro anunciou ter prendido três generais da Aeronáutica suspeitos de planejar um golpe de estado. (...)

Sob o olhar atento do ministro das Relações Exteriores” é a citação mais explícita do que poderíamos classificar como indício da categoria “chapa-branca”. No que essa referência contribui para a informação? Que utilidade noticiosa carrega, além do fato de justificar o close no rosto do ministro, onde só se poderia encontrar um olhar atento, dadas as circunstâncias graves do evento. No entanto, se observamos o texto do locutor e o início do texto da reportagem, vamos ver que, além da redundância, a informação remete unicamente às situações burocráticas do encontro da Unasul, deixando de lado, para a quinta linha, o que seria o fato novo e o motivo real da ida da comitiva – e da reportagem – à Venezuela: o anúncio da prisão de três generais, feito pelo presidente Nicolas Maduro durante o encontro. A pergunta é: o que faz com que nossos repórteres decidam abordar os assuntos a partir da perspectiva da autoridade? Por que consideram importante citar o nome e editar o close da imagem da autoridade?

Nesta mesma edição do Repórter Brasil, o núcleo de Monitoramento e Gestão da Informação da Ouvidoria, solicitado a observar o conjunto da edição, apontou que de 08 reportagens nacionais, 05 abordavam o assunto pelo ângulo oficial; de 05 matérias internacionais, 03 – incluindo a da Venezuela – abordavam os fatos a partir da perspectiva de governos; e de 07 notas, 05 iniciam com citações a fontes oficiais. Por quatro vezes houve citação, no texto de apresentação das reportagens, ao DIEESE–Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, assim mesmo, com o nome completo. Em uma das vezes, o texto da reportagem, logo no início, repete o mesmo nome completo, mostrando que a tendência é comum tanto à edição quanto à reportagem.

A cobertura ao vivo da votação, na Câmara, do marco civil da internet também nos aponta uma tendência a privilegiar fontes oficiais, o que, para a percepção do público, denota a característica de “chapa-branca”. Após o encerramento da votação, em uma entrada ao vivo, respondendo à pergunta da apresentadora sobre detalhes do assunto, o texto diz o seguinte:

STAND UP: “Agora há pouco o relator do projeto, Deputado Alessandro Molon, afirmou que teve medo de que um dos pilares do projeto fosse derrubado. Ele se referia à liberdade de expressão, que segundo ele é garantida pelo artigo 20... agora mudou a numeração... é o artigo 19, que impede que os conteúdos sejam retirados da internet sem antes uma decisão judicial. As entidades da sociedade civil que estavam aqui comemoraram muito a provação. Agora o projeto vai (...)

O que faz com que jornalistas da mídia pública deem tanta importância a uma declaração desprovida de conteúdo informativo (...o deputado afirmou que teve medo...) de um deputado mesmo sendo o Relator do projeto de lei, sobre algo que sequer ocorreu, em detrimento das personagens que ficaram restritas à opacidade da categoria “entidades da sociedade civil”, noticiadas apenas como tendo “comemorado muito a provação”?

Não podemos dar garantias sobre o que os usuários dos veículos do sistema público de comunicação que escrevem à Ouvidoria entendem sobre o termo chapa-branca, ou o que percebem como sendo a distinção entre o jornalismo da empresa pública e o da empresa privada, mas o fato é que utilizam a expressão como forma de apontar a diferença entre o bom e o mau jornalismo, ou o que consideram jornalismo imparcial e jornalismo comprometido.

Apenas como ilustração, a gênese da expressão “chapa-branca” tem suas raízes na tentativa de controle da informação e remonta ao início do Século XX, quando o então Presidente da República Nilo Peçanha criou a “Seção de Publicações e Bibliotheca do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio”, cuja função era distribuir informações de interesse do órgão à imprensa. A moda pegou e se institucionalizou nas instâncias governamentais, que passaram a ter redatores dedicados a produzir notas para serem distribuídas à imprensa.

No Estado Novo de Getúlio Vargas, a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e os correlatos Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda (Deips) transformaram a divulgação de notícias oficiais em controle ideológico da comunicação; na ditadura militar, a edição do AI-5 significou a forma mais radical de controle ideológico e censura à informação. E é justamente neste momento, na década de 70, que surge a expressão “chapa-branca”, numa referência às chapas dos veículos oficiais, que eram brancas, distinguindo os jornalistas que davam notícias privilegiando o interesse de fontes oficiais e/ou aderindo ao regime de exceção.

Mas decorrido o tempo na História, com o advento promissor da comunicação pública trazendo a tão ansiada liberdade jornalística – aliás, como jamais se teve – o que será que incide sobre a pena dos nossos jovens jornalistas para que sejam tão afetados pelas siglas e abordagens oficiais, arriscando-se à indesejável classificação pejorativa?

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