O navio Blanco Encalada, de onde partiram as denúncias (a foto é dos anos 50, quando ele ainda estava a serviço dos EUA sob o nome USS Wadleigh. O barco passou para a Marinha do Chile em 1963)

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Marinheiros são presos por denunciarem golpe em gestação

Criado em 10/09/13 22h24 e atualizado em 02/01/15 12h56
Por Maurício Brum Fonte:Especial para o Sul21 [2]

O navio Blanco Encalada, de onde partiram as denúncias (a foto é dos anos 50, quando ele ainda estava a serviço dos EUA sob o nome USS Wadleigh. O barco passou para a Marinha do Chile em 1963)
O navio Blanco Encalada, de onde partiram as denúncias (a foto é dos anos 50, quando ele ainda estava a serviço dos EUA sob o nome USS Wadleigh. O barco passou para a Marinha do Chile em 1963) (Sul 21)

No início de agosto de 1973, um comentário vinha ganhando força nos navios da Marinha do Chile. Raúl Montero, o comandante-em-chefe, não poderia durar muito mais tempo no cargo. Se persistisse, só o faria mudando radicalmente de ideias. Posicionado ao lado do regime constitucional – o que significava defender o governo de Salvador Allende frente a uma crise econômica e social que só crescia –, a maior autoridade da Armada estava ficando isolada. A pouco mais de um mês do golpe de Estado, Montero não poderia estar mais distante dos pensamentos de outros almirantes.

O discurso do “terror comunista” era recorrente e tinha se tornado mais aberto, desde que, meses antes, o almirante José Toribio Merino começara a palestrar em vários navios sobre o que considerava uma ameaça iminente de guerra contra o Peru. Segundo sua peroração, os peruanos tentariam recuperar os territórios perdidos para o Chile durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), e fariam isso antes que as batalhas chegassem ao centenário. À época governado por uma atípica ditadura militar de esquerda, o Peru seria ajudado por “comunistas vende-pátrias” chilenos.

É difícil mensurar qual a dimensão dessas falas, pois não existem registros fiáveis de quantas vezes a arenga foi proferida, e tampouco é seguro dizer o quanto as palestras de Merino foram absorvidas pelos marinheiros. O detalhe serve mais como um indício da fragmentação interna da Armada nos momentos que precederam o golpe – e a da existência de nomes de relevo que se posicionavam contra os princípios defendidos por Raúl Montero, até o extremo de precisarem derrubá-lo. Em agosto isso ficou ainda mais claro.

Após o assassinato do capitão-de-navio Arturo Araya, o oficialato passou a falar abertamente em uma intervenção militar. Ajudante-de-ordens de Allende para assuntos navais e amigo pessoal do presidente, Araya fora morto na sacada de casa após um atentado cometido por grupos de ultradireita – mas a imprensa de oposição conseguiu abafar as investigações e, nos dias que se seguiram, continuou jogando a culpa sobre militantes dos partidos ligados ao governo. Mesmo sem corresponder à verdade, o noticiário ajudou a exaltar os ânimos na busca por uma estratégia que derrubasse ou neutralizasse a Unidade Popular.

Em pelo menos dois navios, o marinheiros de patentes mais baixas chegaram a escutar seus superiores conversando entre si sobre a possibilidade de dar um golpe. Tanto no cruzador Almirante Latorre quanto no destroyer Blanco Encalada, os comentários dos oficiais iam em direções convergentes: falava-se muito em uma sublevação contra Allende e, mais do que isso, em executar na sequência um certo “Plano Jacarta”. O nome fazia menção ao movimento anticomunista que matou mais de 500 mil pessoas na Indonésia entre 1965 e 1966. “Jacarta” já havia se tornado um termo corrente no Chile, pichado em mais de uma parede de Santiago para demonstrar oposição ao governo.

A conversa dos golpistas, porém, não morreu nos barcos, porque os recrutas se recusaram a escutá-la e não agir. Muitos dos marinheiros eram jovens cumprindo o serviço militar, em geral saídos de famílias de baixa renda, talvez eleitores de Allende, e certamente alheios às tramas vindas de cima. Se após o golpe muitos deles acabaram se tornando cumpridores de ordens brutais por medo de represálias, naquele momento ainda parecia possível questionar os comandos. Assustados com o que ouviram, alguns desses marinheiros se organizaram para procurar as lideranças de partidos ligados à Unidade Popular – notadamente, o Partido Socialista e o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), embora algumas fontes digam que o grupo também se reuniu com o Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR), demonizado por sua defesa da luta armada para buscar a revolução socialista.

A denúncia não tardou a vir a público e ocasionar – como tudo por aqueles dias – uma vigorosa guerra de versões, mais ou menos destacadas de acordo com o viés do jornal que as publicava. Os oficiais acusados não apenas desconversavam sobre o teor de seus diálogos – ainda devolveram a denúncia. Para se defender, atacaram, afirmando que os subalternos que se dirigiram aos partidos eram apenas subversivos infiltrados. Prometeram levar as investigações internas até as últimas consequências, não para desmantelar a trama golpista que estava sendo revelada, mas para punir os responsáveis pela denúncia que, garantiam, não tinha qualquer fundo de verdade.

Em 7 de agosto de 1973, 23 dos tripulantes identificados como delatores foram presos e torturados pelos superiores, que buscavam uma confissão sobre o suposto “movimento subversivo”. O total de aprisionados pelos golpistas atingiu a marca de 62 militares, todos acusados por conspirar para desmoralizar a Armada. Enquanto isso, a instituição seguiu negando qualquer tendência ao golpe. O discurso não precisou mentir por muito mais tempo. Trinta e cinco dias mais tarde veio o 11 de setembro – e o golpe de Estado começaria precisamente em uma ação da Marinha. Por volta das seis da manhã daquele dia, os navios de guerra de Valparaíso apontaram seus canhões contra a cidade, exigindo a renúncia de Allende. O governo não passaria do início da tarde.

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